sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Por que decisão de Ricardo Salles sobre manguezais representa 'volta no tempo' de quase 500 anos

 



O Brasil pode ter 'voltado no tempo' em quase 500 anos nos esforços para a conservação dos manguezais.

No fim de setembro, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) revogou, por articulação do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), três resoluções sobre temas ambientais. Uma delas, a de nº 303, de 2002, tratava da proteção das áreas de mangues (além de restingas e dunas).

A revogação, dizem especialistas, coloca em risco o bioma alagado que é a área protegida mais antiga no Brasil: a primeira norma protegendo os manguezais é um Regimento editado pela Coroa portuguesa em 4 de fevereiro de 1577, há 443 anos e oito meses.

E esta não foi a única norma criada pela antiga metrópole portuguesa para defender as áreas inundadas. Os mangues também foram protegidos por um Decreto de 1664 e por uma Carta Régia de 1678.

As informações foram levantadas pela bióloga Norma Crud Maciel, morta em 2018, e são citadas no Atlas dos Manguezais do Brasil, editado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

Naquele momento, o objetivo dos monarcas portugueses não era exatamente manter o equilíbrio ambiental, conceito inexistente à época. A ideia era preservar o bioma para garantir o acesso à casca das árvores do mangue, da qual é extraído tanino. A substância é usada no tratamento do couro, e tinha importância econômica para a então colônia.
Fim das restrições ao desmatamento

No fim de setembro deste ano, o Conama revogou quatro resoluções que tratavam de diferentes áreas da política ambiental do país. A reunião em que as resoluções foram derrubadas foi convocada poucos dias antes pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que articulou pela derrubada.

Duas das resoluções eliminadas restringiam o desmatamento e a ocupação em áreas de restinga, manguezais e dunas.

Na prática, o fim das normas, que estavam em vigor desde 2002, criou a possibilidade de ocupação em áreas de restinga numa faixa de 300 metros a partir da praia. Antes, essas áreas eram consideradas como sendo de proteção ambiental.

Na mesma reunião, o Conama também permitiu a queima de lixo tóxico — como embalagens de defensivos agrícolas, por exemplo — em fornos usados originalmente para a produção de cimento.

Além disso, o conselho também derrubou uma resolução que criava normas para projetos de irrigação.

Quanto aos manguezais, o fim das resoluções significou a liberação da criação de camarões (carcinicultura) em áreas conhecidas como "apicuns". Estas são áreas que fazem parte do bioma do manguezal, apesar de não possuírem as árvores características.

A questão também se tornou objeto de um vai-e-vem judicial: no fim de setembro, uma juíza federal do Rio de Janeiro decidiu anular, de forma provisória (liminar), a decisão do Conama.

No entanto, alguns dias depois, no começo de outubro, o desembargador Marcelo Pereira da Silva, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) atendeu a um pedido da União e suspendeu a liminar. Com isso, as resoluções permanecem revogadas.

A reportagem da BBC News Brasil procurou o Ministério do Meio Ambiente para comentar o assunto, mas não houve resposta até o fechamento desta edição.

Em manifestação ao Supremo Tribunal Federal (STF) nesta terça-feira (06/10), o Ministério do Meio Ambiente disse que as resoluções derrubadas eram "ilegais", "inúteis" e "pleonásticas" (isto é, redundantes).

Nos últimos dias, tanto a pasta quanto o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, têm dito que a derrubada da resolução sobre áreas de preservação não deixará as áreas de dunas, restingas e manguezais desprotegidas.

Estes biomas já seriam protegidos por outras leis, como o Código Florestal e a Lei da Mata Atlântica — visão que é contestada por especialistas.