quarta-feira, 23 de junho de 2021

O vírus do ‘sommelier de vacina’ se alastra e prejudica o país; preferência por imunizante não tem base científica e atrapalha avanço da campanha, dizem especialistas

 


Mesmo com o fato de todos os imunizantes contra a Covid-19 serem seguros e aprovados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), ainda há pessoas que vão aos postos de saúde em busca de uma vacina específica. Mas a atitude, além de não ter embasamento científico nenhum, tem contribuído para atrasar o andamento do Plano Nacional de Imunização (PNI).

A preferência das pessoas que acham natural escolher vacina tem recaído por ora sobre a Pfizer — os outros dois imunizantes em uso no no Brasil são os da CoronaVac e da AstraZeneca. Entre os motivos que levam brasileiros a rejeitar uma ou outra marca estão principalmente a crença em fake news sobre efeitos colaterais e teses equivocadas sobre as taxas de eficácia dos imunizantes — todos eles têm índices de imunização considerados adequados para a doença e foram aprovados pela Anvisa (Agência Nacioal de Vigilância Sanitária).

Segundo o epidemiologista Pedro Hallal, da UFPel (Universidade Federal de Pelotas), preferir um imunizante a outro é um “absurdo”. “Não tem nenhuma evidencia para essa escolha. Pelo contrário, todas as vacinas têm mostrado basicamente o mesmo efeito. Além de ser um pouco egoísta, essa postura também não faz sentido do ponto de vista científico. Não tem nenhuma evidência de que a pessoa será beneficiada tomando uma vacina ou outra”, explica.

Em Porto Alegre, o diretor de Vigilância em Saúde da cidade, que coordena a vacinação, Fernando Ritter, diz que a procura por imunizantes específicos é uma atitude bastante recorrente. Segundo ele, a Pfizer, que começou a ser distribuída no Brasil há pouco tempo, se tornou a “menina dos olhos”. “As ligações são, em sua imensa maioria, com perguntas de em qual local tem Pfizer para a primeira dose. Isso gera aglomeração. Eu também recebo muitas mensagens no fim do dia e de manhã perguntando: onde tem Pfizer?”, relata.

Para ele, preferir uma vacina a outra é algo que não tem cabimento. “Todas as vacinas distribuídas em território nacional são eficazes e seguras”, afirma. Ritter alerta para o risco de a pessoa ficar sem se vacinar enquanto espera um determinado imunizante. “Não vai ter Pfizer para todo mundo. Até a semana passada, 20 mil pessoas com mais de 54 anos de idade tinham a possibilidade de se vacinar e não foram”, conta.

“Além de ser um pouco egoísta, essa postura também não faz sentido do ponto de vista científico. Não tem nenhuma evidência de que a pessoa será beneficiada tomando uma vacina ou outra”. (Pedro Hallal, epidemiologista).

A AstraZeneca, segundo ele, é o imunizante mais rejeitado. Isso passou a acontecer em maio, quando uma gestante que recebeu a vacina morreu em decorrência de trombose, supostamente um efeito colateral da doença — isso ainda não está comprovado. “A AstraZeneca não está sendo aplicada apenas no caso de grávidas, mas muito mais por uma precaução do que por algum fato”, afirmou –a medida de não usar o imunizante em grávidas por medida preventiva também é adotada em outros locais.

Ritter afirma que a postura de ficar escolhendo vacina atrapalha o progresso do plano de imunização. “A gente programa o processo de evolução de vacinação de uma faixa etária, mas algumas pessoas acabam não indo porque querem uma vacina que julgam ser a melhor por conta do que veem nas redes sociais”, afirma.

Na cidade de São Paulo, a preferência por um imunizante começou depois que o primeiro lote de vacinas da Pfizer chegou, segundo o secretário municipal de Saúde, Edson Aparecido. Agora, segundo ele, essa atitude só ocorre em alguns pontos da cidade e é pouco comum na periferia. “Não é momento de ninguém ficar escolhendo vacina. Vacina boa é aquela aplicada. Em um ou dois dias de espera, você já pode pegar o vírus e transmitir para a sua família”, alerta o secretário.

Nesta terça-feira, 22, o Ministério da Saúde espera receber o primeiro lote de 1,5 milhão de doses da Janssen, vacina que é aplicada em dose única, o que aumenta a possibilidade de se tornar a nova preferida dos “escolhedores de vacina”.

Esperteza

Além de egoísta, como lembra Hallal, a prática de adiar a imunização para escolher a vacina que irá tomar, no momento em que a pandemia já contabiliza mais de meio milhão de mortos, evoca uma das piores características atribuídas aos brasileiros: a da esperteza, a de querer “levar vantagem em tudo”, como dizia o bordão de uma campanha publicitária de cigarro estrelada nos anos 1970 pelo craque de futebol Gerson e que ficou imortalizada como a “Lei de Gérson”.

Atrasar a vacinação em alguns dias só porque quer escolher o imunizante que irá tomar coloca em risco o restante da população e não contribui para a estratégia coletiva de conter o vírus, que afinal é o que importa.

É sempre bom lembrar também o ditado popular de que “esperteza demais engole o dono”: em março deste ano, em meio a uma outra praga da pandemia — a dos fura-filas de vacinas –, um grupo de empresários de Minas Gerais que queria se imunizar antes dos outros acabou caindo no golpe de uma enfermeira, que vendeu e aplicou soro aos espertos.

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